Uma pesquisa em torno de uma coleção de fotogramas de filmes de cinema, lançados desde a década de 1920 até a de 1960. É o que apresenta a exposição individual “Quando o cinema se desfaz em fotograma”, do artista visual, fotógrafo, professor e curador Solon Ribeiro, cuja abertura acontecerá na próxima terça-feira, 20, às 19 horas, no Centro Cultural Banco do Nordeste-Fortaleza (rua Floriano Peixoto, 941 – 2º andar – Centro – fone: (85) 3464.3108).
Os fotogramas serão exibidos em suportes como back-lights (uma espécie de expositor que é iluminado no verso), totens e projeções em vídeo. A programação de abertura da mostra de Solon Ribeiro no CCBNB-Fortaleza abrange, ainda, uma festa comandada pelo VJ argentino MLIVE (Matias Sebastian Pereyra), além de uma performance com três modelos que usarão vestidos criados pelos estilistas Sérgio Gurgel, Silvânia Meires e Themis Memória, inspiradas na temática da exposição.
Na exposição de Solon Ribeiro, os fotogramas são deslocados de sua função habitual e descontextualizados de seu ambiente de origem, retirando-se, assim, a simbologia da representação para que ela seja apenas imagem, e possibilitando assim outra vivência de maneira que a informação que temos se adapte à circulação de novos impactos visuais. “É a partir da razão de ser da fotografia e do cinema com a construção de um corpo capaz de acolher o encontro da diversidade de linguagens, que procuro realizar um corte no tempo cinematográfico”, afirma o artista.
Todo o evento de abertura será filmado para exibição no CCBNB-Fortaleza, no decorrer da mostra. Com entrada franca, a exposição ficará em cartaz até o próximo dia 22 de novembro (horários de visitação: terça-feira a sábado, de 10h às 20h; e aos domingos, de 10h às 18h).
Celebração: o Lugar da Dúvida (texto de Yuri Firmeza)
Trecho do texto intitulado “Celebração: o Lugar da Dúvida”, de autoria de Yuri Firmeza, artista visual e mestrando em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo (USP), dá uma pista de como será a dinâmica da exposição de Solon Ribeiro:
“Quando o cinema de desfaz em fotograma é um pretexto para a mistura, para o encontro, para a celebração. Primeiro pelo vídeo realizado a partir de um convite feito para três estilistas criarem seis vestidos a partir de três fotogramas de beijos. Cada roupa apresenta a metade de um fotograma, um corpo, uma boca, um beijo que necessita do outro para acontecer. Segundo, pelos oito back-lights com fotogramas de beijos apresentados em uma sala totalmente escura. Terceiro, pelo ambiente criado a partir de bancadas de luz com folhas dos álbuns de fotogramas. Quarto, e talvez a disponibilidade de encontro mais evidente, a boate criada dentro do espaço expositivo, com DJ, VJ, projeções de fotogramas. Cinema ao vivo, cinema vivo.
No entanto, em todos esses trabalhos, não se trata de uma reconstituição dos fragmentos dos restos do cinema. Não se trata de uma imposição do encontro, mas de uma construção de um espaço singular propício para essas contaminações. Por exemplo, no vídeo realizado com o apoio dos estilistas não existe a intenção de reconstituir as metades, recortadas dos fotogramas, que se apresentam impressas nos vestidos. O trabalho preserva a alteridade e em única cena desmonta a possível leitura do vídeo como operação de captura, de reconciliação pré-disposta.
Tal cena consiste no ato de rasgar um dos vestidos – o único que traz o fotograma com a imagem de um beijo em sua “integridade”. Esse vestido carrega em seu interior, uma “luz projecionista”. Com esse segundo golpe do corte, o dilaceramento, o respiro moribundo dos 24 fotogramas por segundo é silenciado momentaneamente. É, no entanto, na festa que o ruído se corporifica. A efemeridade da festa é um falso problema, ou melhor, é um equívoco, uma vez que ela permanece pulsante nos que nela dançaram. A festa é do corpo, da alegria do corpo em ação.
Se Ribeiro não afirma – como fez Nietzsche – que vem como o vitorioso Dionísio e que transformará o mundo em uma festa, fica evidente que sua Posição propõe algo tão potente quanto”. (Yuri Firmeza)
Texto do pós-doutor André Parente sobre Solon Ribeiro e a exposição
Em texto a seguir, quem apresenta Solon Ribeiro e a exposição “Quando o cinema se desfaz em fotograma” é André Parente – artista, pesquisador, professor da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Comunicação pela Universidade de Paris VIII, França, tendo estudado sob a orientação de Gilles Deleuze, no período de 1982 a 1987, e pós-doutor pela Universidade de Paris III Sorbonne Nouvelle, França. Confira:
“Solon Ribeiro, artista cearense com formação na Escola de Arte Decorativa de Paris, tem seus trabalhos voltados para a imagem fotográfica. Como em muitos artistas contemporâneos, há em sua obra uma problematização que leva em conta o fenômeno contemporâneo da saturação de imagens. Para Solon, a imagem é um mistério, razão pela qual precisamos ressuscitar seus aspectos mágicos e metafísicos.
Nos anos 1990, ele herdou de seu pai uma imensa coleção de mais de trinta mil fotogramas de filmes, iniciada nos anos de 1950 por seu avô Ubaldo Uberaba Solon, dono de uma sala de cinema no interior do Ceará. Esses fotogramas, que em geral mostram os atores principais dos filmes, foram cuidadosamente guardados em álbuns feitos para esse fim, contendo o nome e o ano da produção. Parte da coleção, todavia, está fora desses álbuns e foi conservada de forma imprecisa, dificultando a identificação dos filmes de que foram extraídas.
O golpe do corte, termo de Solon para a série de vídeos e instalações que fez com esses fotogramas, contém dois momentos essenciais: o próprio golpe de corte, que implica a extração de fotogramas dos filmes, e o corte posterior, operado por Solon na montagem e na encenação dessas imagens. Num dos trabalhos, por exemplo, Solon utiliza fotogramas com legendas e cria um diálogo imaginário entre os personagens. Noutro, projeta os fotogramas de cima, enquanto maneja uns almofadões, sobre os quais se deita, de modo que eles possam refletir melhor as imagens dos fotogramas projetados. Curiosamente, o artista parece um ator do cinema expressionista, um tanto incomodado pelas imagens que são projetadas sobre ele, como se fossem clichês que pudessem, porventura, roubar-lhe a alma.
Vemos em tais trabalhos de Solon uma radicalização do espírito contido nas Cosmococas de, partindo de imagens-clichê, criar uma situação de ruptura com o NUMB-CINEMA, pela qual se estabelece um cinema participativo em que o espectador tem seu corpo liberado pelo CORPO-ROCK. Em outros termos, o de extrair dos momentos-clichê dos fotogramas uma performance-ambiente que envolva tanto os espectadores quanto o próprio artista. A esse respeito, é bom lembrar que, num de seus primeiros trabalhos, Solon projetava as imagens sobre os corpos dos espectadores, a exemplo de Corpocinema, de Jeffrey Shaw.
Nos trabalhos mais recentes, por sua vez, Solon projeta os frames sobre seu próprio corpo. Num dos vídeos, ele aparece num matadouro, em meio a restos de bois mortos. As imagens dos fotogramas, cheias de glamour, são completamente violentadas por gestos do artista, que interage com a carne, o sangue, as tripas e as imagens: ora ele parece o bandido da luz vermelha, ora Glauber Rocha em transe. Na verdade, os trabalhos quase-cinema de Solon estão intimamente relacionados à forma como Oiticica e Neville se apropriaram das imagens pop de Marilyn Monroe, Jimi Hendrix e Mick Jagger, para renová-las. Em outros momentos ultrapassam o sentido da apropriação pela parada na imagem, tornando-se uma espécie de arquivo vivo dotado de uma dimensão performática.
Assim, o que nos chama a atenção na obra de Solon não é apenas essa dimensão fractal, intermediária, que sempre nos deixa entre as imagens, entre a fotografia e o cinema, entre o cinema e a instalação, ou entre o espectador e o autor. Chamamos a atenção, sobretudo, à forma como seu trabalho é um convite ao espectador, para que crie a sua própria fabulação, valendo-se dos golpes e dos cortes operados pelo artista. Afinal, se Solon não gosta de se definir como um artista, é porque o artista, como diria Godard, fixa-se num substantivo de majestade que destrói toda possibilidade de fabulação. O golpe de Solon consiste, portanto, num convite para que o espectador participe da mobilidade da obra, um convite à La Marville para que ele se perca na imagem – como o próprio Solon um dia se perdeu – e encontre uma forma de se renovar, de se recriar, de se reencontrar outro.
Dito de outro modo, o golpe de cinema de Solon se insere na tradição do cinema de invenção no Brasil, isto é, de um cinema de cujo personagem principal apresenta o que poderíamos chamar, provisoriamente, de certa idiotia do real como força espiritual. Trata-se, no mais das vezes, de mentecaptos, zumbis, macabéas, visionários e autômatos espirituais que habitam cada um de nós, uma vez que são como a pré-história de nossas consciências (O super-outro); de nossos pensamentos e impossibilidades de pensamento (A hora da estrela e Mar de rosas); de nossas sexualidades (Copacabana mon amour, O homem do pau-Brasil e Piranhas no asfalto); de nossas línguas (Tabu e Sermões); de nosso subdesenvolvimento (O bandido da luz vermelha e Vida secas); de nossos corpos maltratados e famintos (A opção ou as rosas da estrada e Jardim de espuma), salvos pela carnavalização e pela antropofagia (A lira do delírio); de nossa inocência (Inocência); de nossa loucura (Loucura e cultura, A idade da Terra, Imagens do inconsciente e Matou a família e foi ao cinema); e de nossa idiotia total (Bang bang, Sem essa aranha e Nem Sansão nem Dalila), que é a única forma de superar o intolerável que habita a nossa sociedade. De fato, só a idiotia pode nos salvar da estupidez dos bárbaros arrogantes que fazem a mediocridade em tudo triunfar. Como diria Dostoievski: “Ele é idiota, mas é um príncipe”. Tais personagens tiram suas determinações espirituais de suas fraquezas, de um desejo desinteressado de afirmação da vida, de um desejo capaz de reunir a Terra ao Inconsciente. Com ele, é toda uma imagem-pensamento que se nos oferece como resistência às imagens-clichê e a verdades preestabelecidas, veiculadas pelo poder”. (André Parente)
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